16.1.08

Um florescimento-fantasma

Num texto onde tenta perspectivar a absoluta novidade histórica e a central importância de uma revolução "popular" triunfante (sem atender, porém, como todos os crentes, às razões do seu calamitoso fracasso), Manuel Gusmão diz a dada altura esta coisa espantosa: "A revolução [soviética] é acompanhada por um florescimento artístico e cultural incomparável" (Le monde diplomatique, Jan 08).
Não é isso verdade, nem podia, dadas as premissas autoritárias de um regime que desde o primeiro momento hostilizou toda a independência crítica e toda a liberdade de criação,um regime que interpretou de forma literal o lamento brechtiano de que falar de árvores é quase um crime. Na União Soviética, tanto quanto sei (mas talvez saiba pouco), tudo o que não fosse entusiástico apoio ao regime era delito de opinião. E, mais do que falso, é verdadeiramente obsceno falar em "florescimento artístico" quando toda a gente sabe qual foi o destino dos intelectuais russos no período 1917-1991: os melhores emigraram, calaram-se ou foram liquidados, e os piores limitaram-se a lutar pela vida, traindo-a e traindo-se a si próprios. Claro que Gusmão não exemplifica em que se terá manifestado esse suposto florescimento artístico. Poderia, quando muito, ter falado em Eisenstein e Dziga Vertov (rapidamente anulados, de resto). O que me parece pouco para um "florescimento". Houve mais alguma coisa?
A verdade é que dirigismo e arte são incompatíveis, razão pela qual os revolucionários profissionais sempre desconfiaram dos artistas. Demasiado independentes, demasiado egoístas, demasiado pessimistas, demasiado burgueses, no fundo. Uma arte proletária é simplesmente um oximoro. E um dos equívocos dos revolucionários profissionais russos e seus comissários para as artes foi não terem compreendido que o objectivo devia ter sido elevar o povo à arte, em vez de a fazer descer ao povo. Mas isso seria outro programa e outra história.
Seja como for, nada disto tem o mínimo interesse.

8 comentários:

Anónimo disse...

Penso que estaria a referir-se às Vanguardas Russas que marcaram não só arte moderna em geral, mas também o imaginário mais contemporâneo. Apesar do autoritarismo soviético e do correspondente exterminio criativo e existencial dirigido por Estaline.

JMS disse...

Não creio, pois as vanguardas artisticas e literárias russas apareceram antes da Revolução e foram esmagadas pela doutrina do realismo socialista. Sinceramente, não percebo a que poderá ele estar a referir-se. Exceptuando os fogachos de Eisenstein e Vertov, a arte do período soviético é virtualmente inexistente.

Anónimo disse...

Sim, claro. A Tsvétaieva e a Mandelstam não podemos associar a expressão "florescimento".
Obrigada pela lucidez.

JMS disse...

Não percebi. O que é que esses dois têm a ver com um suposto florescimento da arte ou da literatura soviética?

Anónimo disse...

Precisamente, não têm nada a ver.
A peculariedade das suas poéticas confronta e supera essa realidade do tempo.

manuel a. domingos disse...

penso que o problema aqui está no termo "soviético/soviéticas".

Tsvétaieva, Mandelstam e Akhmátova não eram soviéticos, mas sim russos.

Anónimo disse...

Não li Gusmão, mas o que me parece aqui são diferentes conceitos de arte.
Afinal, o que é arte?

Anónimo disse...

Parece-me uma evidência o que diz o JMS. O Modernismo, o Futurismo, o construtivismo Russo que começam antes da revolução e eram revolucionários,estavam completamente liquidados uma década depois da Revolução. O caso desse poeta extraordinário que foi Maiakovski é exemplar quanto a essa purga ou liquidação. De tal forma que não existe qualquer comparação entre a literatura russa que foi produzida nos cinquenta anos anteriores à Revolução (e vivia-se sobre o Czarismo) e os cinquenta anos posteriores. Bom, existem algumas excepções, uma delas foi Mikhail Bachtin, um dos mais extraordinários teóricos da Literatura do séc.XX.