10.12.07

Vergonha (ou orgulho) em ser português

Chamava-se Vítor Nascimento e dedicava-se ao banditismo romântico, misto de vagabundagem e pequena delinquência. Em cada coração via também uma carteira, em cada carteira um coração. Nunca roubava um sem a outra. Uma espécie de M. Verdoux, menos violento. Exercia em França, donde regressava de longe a longe, quando as coisas corriam mal. Num desses regressos, tentou incutir-me algumas luzes a respeito do ofício. Sem grande vocação para a delinquência, pouco retive desses ensinamentos. Mas de uma coisa me lembro, de ele me dizer que em França dava pelo nome de "Marlon", suposto brasileiro de S. Paulo. Por que não assumir a sua naturalidade portuguesa?, perguntava eu ingenuamente. Porque em França, esclarecia Marlon os meus vint'anos, um delinquente sentimental perderia toda a credibilidade se revelasse a sua condição de português. Ninguém o levaria a sério. Desanexado da vassoura e da colher de trolha, um português, de Vilar Formoso para a frente, só pode ser uma fonte de embaraço e gargalhadas, acreditava Vítor N.

Nunca percebi muito bem como se pode sentir orgulho ou vergonha por um facto tão anódino e acidental como a nacionalidade. Sempre achei que ter nascido em Portugal podia constituir um privilégio ou uma desvantagem relativas, dependendo do lugar geográfico e político donde se observa, mas nunca me ocorreu tingir de valores morais tal circunstância, razão pela qual o nacionalismo sempre me pareceu uma variedade da miopia, ou uma espécie de plebeização do exclusivismo aristocrático próprio do ancien régime. Para um individualista, a nacionalidade é tão irrelevante como o sexo, a classe ou a cor da pele: para onde quer que olhe, só vê gente e nada mais, em toda a parte o mesmo nódulo de necessidades. Um dos riscos que corre quem sofreu o acidente de nascer italiano ou inglês ou americano, por exemplo, é o de acreditar que fora das suas fronteiras começa o inferno, a barbárie, a periferia do mundo; ao passo que uma das vantagens (a única?) de se nascer na periferia é não permitir grande lugar para imaginárias presunções de grandeza. A desvantagem, já se vê, é o provincianismo de quem acha que lá fora é que é bom, uma noção geralmente acompanhada pela crença de que, enquanto colectivo (senão enquanto indivíduos!), somos inferiores a franceses, ingleses, dinamarqueses. Curiosamente, esse complexo de inferioridade parece manifestar-se sobretudo nas classes ditas instruídas. É ver como na blogosfera , por exemplo, abundam as patologias de embevecimento por tudo o que vem da América ou do Reino Unido. Qualquer escritor ou jornalista anglo-saxónico, por mais insignificante que seja, encontra sempre por cá uma legião de admiradores e citadores. Há quem não perca pitada do que literária ou jornalisticamente se profere em Londres ou Washington, quem se consideraria inferiorizado se tivesse que confessar que não leu o último Roth ou o último New York Times; há quem mais facilmente admitiria não ter lido Raul Brandão do que Zadie Smith ou coisa que a valha; quem, enfim, confunda civilização com a leitura do Washington Post (como se o W.P. fosse melhor do que o Público ou o Correio da Manhã!) ou da CNN News. Essa terapêutica afectação por parecer estrangeiro, por não parecer de cá, é tão ridícula quanto inofensiva; que lhes aproveite, se contribui para a auto-estima de algumas brônzeas almas, carecentes de lustro.

Mas assim como as pessoas não são todas iguais (o que não significa, ó liberalóides, que não devam ter exactamente os mesmos direitos), o mesmo se passa com os países. Há sítios mais felizes para se nascer, outros menos, outros nada. E se é absurdo ter vergonha (ou orgulho) em ser português, é compreensível, é quase inevitável sentir-se vergonha do país que nos calhou em sorte (uma vergonha, note-se, que não nos atinge – ou não nos deveria atingir – individual e pessoalmente) quando assistimos a uma reportagem como a que ontem passou na TVI, sobre crianças portuguesas com paralisia cerebral que têm que se deslocar a um país do 3º mundo (Cuba) em busca de um tratamento que as autoridades médicas lusas consideram talvez demasiado dispendioso para ser dispensado a meros danos colaterais da guerra de classes. Parafraseando uma das minhas anedotas preferidas:
- “Tiveste o azar de nascer com paralisia cerebral?” (pergunta o sarcástico Deus da religião do capital) “Hmm. E um BI português, tens?”,
- “Isso não, felizmente”, responde o infeliz,
- “Então - zbling! - toma lá um.”