Corria o Inverno de oitenta e seis, corria
atrás de nós, que aprendíamos aos poucos
o prestígio do estilo, o fervor da negação.
Os livros começavam a doer, percutiam
como pedras no estômago, cavavam grandes
fomes, a vontade de não ser como os demais.
Que sentimentos eram esses, quase novos,
quando as vozes já rodavam na paleta
mais sombria, do azul para o lilás,
terminando no negrume do vivido,
no mutismo que acendíamos em charros?
Que promessas nos lesavam tão depressa?
Sem emprego para o sonho, nas traseiras
do deserto, a custo decifrávamos a arte
de sorrir. Confundíamos beleza com justiça,
segurança com sarcasmo, tolamente,
no tempo em que falávamos ao frio,
os pés contra a parede do mosteiro.
Nos livros presumíamos a sorte dum esteio
singular, barricadas de papel contra canhões
de frases frias: a narcose do sucesso,
o redondo banditismo da razão, a pujança
numerária, pessoal, dos tubarões,
o respeito dos canalhas e dos parvos.
Hoje, se nos vemos, ocultamos a vergonha
no sorriso do bebé, perguntamos se já diz
o que é suposto com dois anos de infortúnio:
aquele “puta que pariu a minha vida”,
que nós já só usamos contra colectores
de impostos, pisadelas, futebóis.
6.11.07
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10 comentários:
Deduzo que este poema seja teu. Gostei bastante.
Obrigado e obrigado.
Não necessito de tecer loas ou encómios ao artista. Nem ele precisa.
Noto, no entanto, que anda mofino. Será do clima? Será do declive que tem que vencer para atingir a magra recompensa de poder aceder ao preparado de nicociana que tanto aprecia?
Enganas-te, caro cadáver, o artista não está mofino, o poema sim. O artista está feliz como um cuco fugido ao seu relógio.
Sempre com lágrimas a receber os teus poemas...
Não é caso para lágrimas, meu caro ZZ (I suppose). Se um dia passares por Aveiro, avisa.
Um abraço.
Ganda Miguel.
Está prometido. O mesmo se passa contigo quando tiveres saudades dos barrocos desta raia.
"Voz", José Miguel. Voz é o que este poema tem e o que a tua poesia sempre teve desde o primeiro livro. Não preciso de dizer quão bom é o poema, quão forte, autoritária e segura é a voz do narrador, quão bom é o discurso, quão forte é o final
Homem, não me embaraces aqui à frente de toda a gente. Em todo o caso, obrigado.
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