6.11.07

VICTIMS OF THE DANCE

Corria o Inverno de oitenta e seis, corria
atrás de nós, que aprendíamos aos poucos
o prestígio do estilo, o fervor da negação.
Os livros começavam a doer, percutiam
como pedras no estômago, cavavam grandes
fomes, a vontade de não ser como os demais.

Que sentimentos eram esses, quase novos,
quando as vozes já rodavam na paleta
mais sombria, do azul para o lilás,
terminando no negrume do vivido,
no mutismo que acendíamos em charros?
Que promessas nos lesavam tão depressa?

Sem emprego para o sonho, nas traseiras
do deserto, a custo decifrávamos a arte
de sorrir. Confundíamos beleza com justiça,
segurança com sarcasmo, tolamente,
no tempo em que falávamos ao frio,
os pés contra a parede do mosteiro.

Nos livros presumíamos a sorte dum esteio
singular, barricadas de papel contra canhões
de frases frias: a narcose do sucesso,
o redondo banditismo da razão, a pujança
numerária, pessoal, dos tubarões,
o respeito dos canalhas e dos parvos.

Hoje, se nos vemos, ocultamos a vergonha
no sorriso do bebé, perguntamos se já diz
o que é suposto com dois anos de infortúnio:
aquele “puta que pariu a minha vida”,
que nós já só usamos contra colectores
de impostos, pisadelas, futebóis.

10 comentários:

Isabela Figueiredo disse...

Deduzo que este poema seja teu. Gostei bastante.

JMS disse...

Obrigado e obrigado.

Cadáver Morto disse...

Não necessito de tecer loas ou encómios ao artista. Nem ele precisa.
Noto, no entanto, que anda mofino. Será do clima? Será do declive que tem que vencer para atingir a magra recompensa de poder aceder ao preparado de nicociana que tanto aprecia?

JMS disse...

Enganas-te, caro cadáver, o artista não está mofino, o poema sim. O artista está feliz como um cuco fugido ao seu relógio.

Anónimo disse...

Sempre com lágrimas a receber os teus poemas...

JMS disse...

Não é caso para lágrimas, meu caro ZZ (I suppose). Se um dia passares por Aveiro, avisa.
Um abraço.

Anónimo disse...

Ganda Miguel.

Anónimo disse...

Está prometido. O mesmo se passa contigo quando tiveres saudades dos barrocos desta raia.

João Luís Barreto Guimarães disse...

"Voz", José Miguel. Voz é o que este poema tem e o que a tua poesia sempre teve desde o primeiro livro. Não preciso de dizer quão bom é o poema, quão forte, autoritária e segura é a voz do narrador, quão bom é o discurso, quão forte é o final

JMS disse...

Homem, não me embaraces aqui à frente de toda a gente. Em todo o caso, obrigado.