"Esta multidão tem um caracter sui generis, sem analogia alguma com a do boulevard [...] nem com a de Regent Street ou de Pall Mall. Em Londres e em Paris, assim como em Bruxelas, em Madrid, em Lisboa, a população de cada bairro apresenta uma fisionomia particular, raramente se mistura, nunca se confunde com a população de outro bairro. Em Amsterdão desconhecem-se inteiramente estas gradações. Aqui o povo é um, único, compacto, inteiro, indivisível. [...] Nas demais cidades a população acha-se dividida por categorias, como nos teatros, segundo o preço dos lugares; e o espectador de um lugar de libra não se encontra nunca com o de um lugar de tostão. Amsterdão é como a sala geral, com um preço único para toda a gente. [...]E cada um destes homens, quase todos fortes, espadaúdos, bem mantidos, de cabeça alta, tem a sobranceria de quem passeia sem cerimónia numa casa de que é dono. [...]Toda a gente fala uma com a outra sem formalidades, como se todos se conhecessem. Não há noção alguma daquilo a que se chama o respeito nos países em que cada um se julga um pouco mais ou um pouco menos do que o indivíduo que lhe fica à direita ou que lhe fica à esquerda. [...] E não há um único pobre - particularidade característica de todas as aldeias holandesas. Não há um só pobre, e se ninguém vê um palácio em pompa, ninguém vê tambem uma cabana em ruína. Todo o homem, do primeiro ao último, tem o jaquetão bem forrado, a camisola sem uma malha caída, as meias de lã confortáveis, os tamancos altos, por desgastar, a camisa limpa, a barba feita. [...]A aldeia de Broek é para o asseio o extracto de carne concentrado de que a Holanda é o boi. A virtude nacional da limpeza toma aqui o carácter de epidemia etnológica, de ideia fixa, de vesânia geral Esta gente é possesssa do demónio da esfrega, os convulsionários da escova, limposos até à fúria do esmeril, até o frenesi do polidor, até ao delírio do vasculho. [...] Os escarradores às portas das casas, para que não se sacudam os cachimbos na rua. A proibição de atravessarem a aldeia incontinentes ou verminados, que a cosnpurquem e sevandijem. Os gaiatos retribuídos para soprarem o pó das fendas das calçadas, para apanharem do chão e lançarem ao canal, a uma por uma, as folhas secas que se despeguem das árvores. [...] Por toda a parte o mesmo recolhimento discreto e claustral, o mesmo asseio meticuloso, o mesmo espírito fanático da ordem simétrica, rectilínea, matemática, iniludível. [...] Nas velhas ruas as reedificações constroem-se no antigo estilo da localidade, segundo os modelos que ficaram do século XVI, do século XVII e do século XVIII. Nas ruas novas a moderna arquitectura holandesa campeia em plena liberdade de inovação. [...] Os órfãos asiladas pela cidade e pelas congregações têm a carne alegre da saúde e da abundância. Não saem nunca em fila servil, tristemente arrebanhados como pobres animais cativos. Andam à solta nas ruas como cidadãos livres. [...] A cidade julgar-se-ia maculada de uma vergonha pública se alguma das suas orfãs fosse vista com um sapato deformado, com uma touca de véspera, com uma nódoa no vestido, com um surro nas luvas. [...] Na Holanda a liberdade das ideias não se discute como coisa que vem deste ou daquele partido, sendo susceptível de se alargar ou de se restringir segundo o voto de um ou de outro. É uma realidade cósmica, é como um dos elemntos químicos da atmosfera local, existe no ar e no pulmão de cada um. Não se solicita nem se outorga. Respira-se. [...] Um exemplo da firmeza de opinião e da teimosia nacional: Uma noite, à hora de principiarem os espectáculos, encheu-se de passageiros um ómnibus da carreira do Dam para o teatro do Parque. Os homens com os seus binóculos, as senhoras nos seus agasalhos, esperavam que a carrugaem largasse, quando o condutor [...] previne os senhores passageiros de que a companhia resolvera aumentar dez cêntimos de florim ao preço da corrida da noite. Um passageiro toma a aplavra em nome do público, e pergunta como e quando fez a empresa conhecer essa nova disposição. O condutor responde que a empresa não fizera ainda publicar o anúncio, mas que por tal motivo ele prevenia de antemão os senhores passageiros para que houvessem de se apear aqueles que não aceitassem o novo preço. O que falava em nome do público replicou que, não tendo tido publicação solene a resolução tomada pela empresa, o público tinha o direito de não se apear e de ser conduzido pelos preços estabelecidos. O condutor observou que em tais condições não partia. O público insistiu em que não retirava. E, sem mais discussão alguma de parte a parte, ficou o ómnibus parado na praça do Dam com os passageiros dentro, a portinhola aberta, o condutor à espera. Às dez horas da noite o cocheiro desengatou os cavalos e foi com eles para casa. Às dez e meia o público apeou e foi-se deitar."
Ramalho Ortigão, A Holanda.
16.9.07
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