Eduardo Prado Coelho vem hoje, no Público, dar novas provas da sua habitual sagacidade como Analista de Tudo. A propósito do massacre de Virginia Tech, o cronista escreve um texto completamente disparatado, sem nexo, que me merece algumas considerações.
Começa o cronista por manifestar a sua perplexidade perante tais crimes. Por que é que estas coisas acontecem, meu Deus, porquê, pergunta-se EPC. Uma interrogação que representa, no corpo da sua argumentação, o momento da dúvida metódica. Uma espécie de isco retórico para melhor capturar a nossa curiosidade e atenção.
(Abra-se aqui um parêntesis para esclarecer que, se no pensamento escolástico e moderno a dúvida metódica representava uma momentânea suspensão da crença (a “Douta Ignorância” de N. Cusa) com vista a melhor se pavimentar o caminho da verdade, em algumas cabeças actuais, a dúvida já não é metódica mas melódica (num exercício, como dizer, de Sonsa Ignorância), destinada quiçá a adormecer no leitor a vontade de interrogar o real - como se lhe dissesse, enfim: cala-te lá com as tuas hipóteses de resposta, pois estas questões são demasiado complexas até para mim, que sou um sábio e só sei que nada sei. Porque um dos sinais distintivos da direita neo-liberal (da qual não sei se EPC será ou não arauto) é a recusa de qualquer teoria da sociedade. Confrontada com acontecimentos como os de Virginia Tech, a mente liberalóide limita-se a recusar (como simplista-eh!eh!) qualquer hipótese explicativa que envolva algo mais do que os maus instintos, o mau génio ou os maus genes dos perpetradores. Aos neo-liberais, os argumentos de natureza socio-económica parecem sempre demasiado suspeitos de esquerdismo, pois entopem de reticências a liberdade de tipo laisser-faire, a económica, a única que pretendem reconhecer.)
Mas voltemos à crónica de EPC no Público de hoje. Depois do seu momento de dúvida metódica (melódica?), EPC prossegue assinalando, muito de fugida, a facilidade com que - "por motivos algo perturbantes" (???) - qualquer pessoa pode comprar armas nos EUA. Após o que salta, sem qualquer tipo de apoios lógicos (com um movimento ginástico só possível a mentes dotadas de extraordinária flexibilidade) para a constatação do carácter fascizante do pistoleiro Cho-Seung Hui. De caminho, cita uma frase incompreensível de um psicólogo qualquer (cuja interpolação só poderá ser o resultado de uma sabotagem editorial), antes de se internar decididamente pelos prados da metafísica com a originalíssima equação “Nós – O Outro = O Mal”. Ficamos então a saber que para EPC o inferno é o Outro, como nos filmes de John Ford ou Carpenter. O Outro é o “Extraterrestre” (sic), aquele que não é igual a Nós porque o seu coração é Negro como as trevas e aquelas antenas na cabeça, francamente, desfiguram-no bastante. O Outro, afirma EPC, é o ser capaz de fazer aquilo que EPC nunca faria, por exemplo: comprar duas pistolas e matar um ror de gente; é o ser “que nada tem a ver connosco” na sua diferença “radical e absoluta”. Não se percebe o que confere a EPC a segurança de que jamais ... sei lá ... condenaria à morte a sua amada para salvar a pele, como a personagem de “1984” de Orwell. Ccomo é que ele sabe, enfim, em que “Extraterrestre” se converteria (ou não) se lhe acontecesse ir parar a um inferno como o de Auschwitz? Desconfio que, de facto, não faz a mínima ideia de como se comportaria em certas situações-limite, tal como nenhum de nós o sabe. Mas como presumir não custa nada, ou só custa a verdade (que por acaso não tem valor, certo?), cada um presume o que quer, e adiante. Certo é que com esta identificação épêciana do Outro com o Mal, os neo-fascistas portugueses hão de ficar contentes por saber que conquistaram um aliado de peso. Quer-se erradicar o mal? Nada mais simples: basta erradicar o Outro.
O texto de EPC sugere, portanto, que a grande, senão única, “explicação” para este género de massacres é "o Mal", o mal que se introduz ou que germina no interior da pessoa (mas só, atenção!, quando essa pessoa coincide com “o Outro”). A minha avó, se fosse viva, preferiria em tais casos apontar o dedo ao Diabo. Parece até que a estou a ouvir: "aquilo foi o Inimigo que se meteu no raio do home"; e recomendaria, claro, os serviços de um bom exorcista. EPC limita-se a substituir o discurso beato pelo discurso metafísico, e a confundir causas com efeitos, preservando contudo o simplismo maniqueísta da corrente de pensamento que dá (ou se não dá devia dar) pelo nome de neo-pré-modernismo. A minha avó diria que “o Mal” era o resultado da acção do Demónio, EPC sugere que o mal tem origem ...no Mal; a minha avó proporia um defumadouro, um sortido de potentes orações e, no caso de tudo falhar, a presença do tal exorcista; EPC não propõe nada, pois o mal é o Mal, e contra uma tautologia não há defesa possível, a menos que proponha a tal erradicação do Outro propugnada pelos neo-cretinos do PNR.
Não deixa de ser curioso, contudo, constatar como EPC incorre numa contradição. Pois ao insinuar que a origem do Mal não é socio-económica, nem política, nem psicológica ou clínica, mas antes metafísica, o cronista está a sugerir que o Mal é inerente ao homem (e aqui entraria a vexatio quaestio da “natureza humana”); está a sugerir, em suma, que o Inferno se encontra (afinal) dentro de nós. E se o Inferno, ou o Mal, está dentro de nós, presume-se que o Mal seja em cada ser humano uma espécie de potência aristotélica, que a todo o momento pode converter-se em acto. Mas qual o mecanismo capaz de actualizar essa potência? A este respeito, EPC nada diz; um silêncio, esse, comprometedor,e que nos confere o direito de presumir que EPC não tem, afinal, como fundamentar a suposta diferença “radical e absoluta” que presumivelmente o separa do Outro, do ser onde essa potência para o Mal se actualizou efectivamente. E se assim é, se a tal diferença “radical e absoluta” carece de qualquer fundamento filosófico ou cientifico, como podemos nós ter a certeza de que, num diferente contexto social, económico, psicológico, intelectual, etc, EPC não seria homem para comprar uma metralhadora, enrolar um cinto de munições à cintura, e avançar para um massacre na Universidade Nova, por exemplo? Não sabemos, nem ele sabe. É que, se bem compreendemos a exposição de EPC, a sua justificação para a impossibilidade de tal cenário só poderia mover-se dentro destes absurdos parâmetros argumentativos: o Mal não está (afinal!) dentro de Nós (isto é, dentro de EPC) mas sim dentro do Outro (isto é, de Cho-Seung Hui) porque se estivesse dentro de Nós (EPC), nós não seríamos Nós (EPC) mas sim o Outro (CSH)… perceberam?
Pessoalmente, a única coisa que eu percebi foi que as opiniões de EPC são filosoficamente incongruentes, para não dizer pior; e que as suas ideias, a este respeito, são tudo menos claras.
Resta dizer que atirar a culpa de actos de violência como os de Virginia Tech para o inefável da metafísica ou para a insondável perversidade da psique constitui sempre, a meu ver, uma forma de escamotear as responsabilidades da sociedade. Neste caso de Virgínia Tech, em particular, parece óbvio que o aluno coreano sofria de algum tipo de enfermidade mental. Só que os distúrbios psicológicos e morais do indivíduo não podem servir para ocultar as responsabilidades de uma legislação que coloca ao alcance de qualquer frustrado a possibilidade de se vingar do mundo a tiro. Há porém quem defenda, tanto nos EUA como em Portugal, que nada disto teria acontecido se … os outros estudantes estivessem também armados! Uma proposta, diga-se de passagem, de tal forma ridícula que nem um sarcasmo merece.
26.4.07
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4 comentários:
Acredito que todos os seres humanos são criminosos em potencia, mas a educação, a organização das sociedades, as suas leis podem ou não facilitar a as acções criminosas, a passagem de um ser humano criminoso em potencia para um criminoso actuante, por isso concordo com a tua analize, actos violentos como o recente massacre existem porque na América qualquer um pode ter uma arma, para além daquilo ter a sua tradição em cowboys.
Maria João
miguel
este aqui está uma festa
olha que gostei.
saiu a fisga do bolso.
claro maria joao...
Olá, Maria João. Isto é apenas senso-comum. Mas há muita gente que não consegue ver o óbvio...
Caro art e tal, há dias em que as fisgadas se tornam simplesmente inevitáveis.Grande abraço.
Em EPC dúvida não é metódica nem melódica, é merdónica.
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