30.4.07

Lapidário # 2

"A opção histórica perante a qual são postos todos os poderes: [...]escolher entre a confiança dos mercados e a confiança do povo."
Pierre Bourdieu

26.4.07

O Mal Extraterrestre

Eduardo Prado Coelho vem hoje, no Público, dar novas provas da sua habitual sagacidade como Analista de Tudo. A propósito do massacre de Virginia Tech, o cronista escreve um texto completamente disparatado, sem nexo, que me merece algumas considerações.
Começa o cronista por manifestar a sua perplexidade perante tais crimes. Por que é que estas coisas acontecem, meu Deus, porquê, pergunta-se EPC. Uma interrogação que representa, no corpo da sua argumentação, o momento da dúvida metódica. Uma espécie de isco retórico para melhor capturar a nossa curiosidade e atenção.

(Abra-se aqui um parêntesis para esclarecer que, se no pensamento escolástico e moderno a dúvida metódica representava uma momentânea suspensão da crença (a “Douta Ignorância” de N. Cusa) com vista a melhor se pavimentar o caminho da verdade, em algumas cabeças actuais, a dúvida já não é metódica mas melódica (num exercício, como dizer, de Sonsa Ignorância), destinada quiçá a adormecer no leitor a vontade de interrogar o real - como se lhe dissesse, enfim: cala-te lá com as tuas hipóteses de resposta, pois estas questões são demasiado complexas até para mim, que sou um sábio e só sei que nada sei. Porque um dos sinais distintivos da direita neo-liberal (da qual não sei se EPC será ou não arauto) é a recusa de qualquer teoria da sociedade. Confrontada com acontecimentos como os de Virginia Tech, a mente liberalóide limita-se a recusar (como simplista-eh!eh!) qualquer hipótese explicativa que envolva algo mais do que os maus instintos, o mau génio ou os maus genes dos perpetradores. Aos neo-liberais, os argumentos de natureza socio-económica parecem sempre demasiado suspeitos de esquerdismo, pois entopem de reticências a liberdade de tipo laisser-faire, a económica, a única que pretendem reconhecer.)

Mas voltemos à crónica de EPC no Público de hoje. Depois do seu momento de dúvida metódica (melódica?), EPC prossegue assinalando, muito de fugida, a facilidade com que - "por motivos algo perturbantes" (???) - qualquer pessoa pode comprar armas nos EUA. Após o que salta, sem qualquer tipo de apoios lógicos (com um movimento ginástico só possível a mentes dotadas de extraordinária flexibilidade) para a constatação do carácter fascizante do pistoleiro Cho-Seung Hui. De caminho, cita uma frase incompreensível de um psicólogo qualquer (cuja interpolação só poderá ser o resultado de uma sabotagem editorial), antes de se internar decididamente pelos prados da metafísica com a originalíssima equação “Nós – O Outro = O Mal”. Ficamos então a saber que para EPC o inferno é o Outro, como nos filmes de John Ford ou Carpenter. O Outro é o “Extraterrestre” (sic), aquele que não é igual a Nós porque o seu coração é Negro como as trevas e aquelas antenas na cabeça, francamente, desfiguram-no bastante. O Outro, afirma EPC, é o ser capaz de fazer aquilo que EPC nunca faria, por exemplo: comprar duas pistolas e matar um ror de gente; é o ser “que nada tem a ver connosco” na sua diferença “radical e absoluta”. Não se percebe o que confere a EPC a segurança de que jamais ... sei lá ... condenaria à morte a sua amada para salvar a pele, como a personagem de “1984” de Orwell. Ccomo é que ele sabe, enfim, em que “Extraterrestre” se converteria (ou não) se lhe acontecesse ir parar a um inferno como o de Auschwitz? Desconfio que, de facto, não faz a mínima ideia de como se comportaria em certas situações-limite, tal como nenhum de nós o sabe. Mas como presumir não custa nada, ou só custa a verdade (que por acaso não tem valor, certo?), cada um presume o que quer, e adiante. Certo é que com esta identificação épêciana do Outro com o Mal, os neo-fascistas portugueses hão de ficar contentes por saber que conquistaram um aliado de peso. Quer-se erradicar o mal? Nada mais simples: basta erradicar o Outro.
O texto de EPC sugere, portanto, que a grande, senão única, “explicação” para este género de massacres é "o Mal", o mal que se introduz ou que germina no interior da pessoa (mas só, atenção!, quando essa pessoa coincide com “o Outro”). A minha avó, se fosse viva, preferiria em tais casos apontar o dedo ao Diabo. Parece até que a estou a ouvir: "aquilo foi o Inimigo que se meteu no raio do home"; e recomendaria, claro, os serviços de um bom exorcista. EPC limita-se a substituir o discurso beato pelo discurso metafísico, e a confundir causas com efeitos, preservando contudo o simplismo maniqueísta da corrente de pensamento que dá (ou se não dá devia dar) pelo nome de neo-pré-modernismo. A minha avó diria que “o Mal” era o resultado da acção do Demónio, EPC sugere que o mal tem origem ...no Mal; a minha avó proporia um defumadouro, um sortido de potentes orações e, no caso de tudo falhar, a presença do tal exorcista; EPC não propõe nada, pois o mal é o Mal, e contra uma tautologia não há defesa possível, a menos que proponha a tal erradicação do Outro propugnada pelos neo-cretinos do PNR.
Não deixa de ser curioso, contudo, constatar como EPC incorre numa contradição. Pois ao insinuar que a origem do Mal não é socio-económica, nem política, nem psicológica ou clínica, mas antes metafísica, o cronista está a sugerir que o Mal é inerente ao homem (e aqui entraria a vexatio quaestio da “natureza humana”); está a sugerir, em suma, que o Inferno se encontra (afinal) dentro de nós. E se o Inferno, ou o Mal, está dentro de nós, presume-se que o Mal seja em cada ser humano uma espécie de potência aristotélica, que a todo o momento pode converter-se em acto. Mas qual o mecanismo capaz de actualizar essa potência? A este respeito, EPC nada diz; um silêncio, esse, comprometedor,e que nos confere o direito de presumir que EPC não tem, afinal, como fundamentar a suposta diferença “radical e absoluta” que presumivelmente o separa do Outro, do ser onde essa potência para o Mal se actualizou efectivamente. E se assim é, se a tal diferença “radical e absoluta” carece de qualquer fundamento filosófico ou cientifico, como podemos nós ter a certeza de que, num diferente contexto social, económico, psicológico, intelectual, etc, EPC não seria homem para comprar uma metralhadora, enrolar um cinto de munições à cintura, e avançar para um massacre na Universidade Nova, por exemplo? Não sabemos, nem ele sabe. É que, se bem compreendemos a exposição de EPC, a sua justificação para a impossibilidade de tal cenário só poderia mover-se dentro destes absurdos parâmetros argumentativos: o Mal não está (afinal!) dentro de Nós (isto é, dentro de EPC) mas sim dentro do Outro (isto é, de Cho-Seung Hui) porque se estivesse dentro de Nós (EPC), nós não seríamos Nós (EPC) mas sim o Outro (CSH)… perceberam?
Pessoalmente, a única coisa que eu percebi foi que as opiniões de EPC são filosoficamente incongruentes, para não dizer pior; e que as suas ideias, a este respeito, são tudo menos claras.

Resta dizer que atirar a culpa de actos de violência como os de Virginia Tech para o inefável da metafísica ou para a insondável perversidade da psique constitui sempre, a meu ver, uma forma de escamotear as responsabilidades da sociedade. Neste caso de Virgínia Tech, em particular, parece óbvio que o aluno coreano sofria de algum tipo de enfermidade mental. Só que os distúrbios psicológicos e morais do indivíduo não podem servir para ocultar as responsabilidades de uma legislação que coloca ao alcance de qualquer frustrado a possibilidade de se vingar do mundo a tiro. Há porém quem defenda, tanto nos EUA como em Portugal, que nada disto teria acontecido se … os outros estudantes estivessem também armados! Uma proposta, diga-se de passagem, de tal forma ridícula que nem um sarcasmo merece.

25.4.07

Eu sei que já é tarde, mas mesmo assim ...

***


NÃO, NÃO, NÃO SUBSCREVO


Não, não, não subscrevo, não assino
que a pouco e pouco tudo volte ao de antes,
como se golpes, contra-golpes, intentonas
(ou inventonas - armadilhas postas
da esquerda prá direita ou desta para aquela)
não fossem mais que preparar caminho
a parlamentos e governos que
irão secretamente pôr ramos de cravos
e não de rosas fatimosas mas de cravos
na tumba do profeta em Santa Comba,
enquanto pra salvar-se a inconomia
os empresários (ai que lindo termo,
com tudo o que de teatro nele soa)
irão voltar testas de ferro do
capitalismo que se usou de Portugal
para mão-de-obra barata dentro ou fora.
Tiveram todos culpa no chegar-se a isto:
infantilmente doentes de esquerdismo
e como sempre lendo nas cartilhas
que escritas fedem doutras realidades,
incompetentes competiram em
forçar revoluções, tomar poderes e tudo
numa ânsia de cadeiras, microfones,
a terra do vizinho, a casa dos ausentes,
e em moer do povo a paciência e os olhos
num exibir-se de redondas mesas
em televisas barbas de faláeia imensa.
E todos eram povo e em nome del' falavam,
ou escreviam intragáveis prosas
em que o calão barato e as ideias caras
se misturavam sem clareza alguma
(no fim das contas estilo Estado Novo
apenas traduzido num calão de insulto
ao gosto e á inteligência dos ouvintes-povo).
Prendeu-se gente a todos os pretextos,
conforme o vento, a raiva ou a denúncia,
ou simplesmente (ó manes de outro tempo)
o abocanhar patriótico dos tachos.
Paralisou-se a vida do pais no engano
de que os trabalhadores não devem trabalhar
senão em agitar-se em demandar salários
a que tinham direito mas sem que
houvesse produção com que pagá-los.
Até que um dia, à beira de uma guerra
civil (palavra cómica pois que
do lume os militares seriam quem tirava
para os civis a castanhinha assada),
tudo sumiu num aborto caricato
em que quase sem sangue ou risco de infecção
parteiras clandestinas apararam
no balde da cozinha um feto inexistente:
traindo-se uns aos outros ninguém tinha
(ó machos da porrada e do cacete)
realmente posto o membro na barriga
da pátria em perna aberta e lá deixado
semente que pegasse (o tempo todo
haviam-se exibido eufóricos de nus,
às Africas e às Europas de Oeste e Leste).
A isto se chegou. Foi criminoso?
Nem sequer isso, ou mais do que isso um guião
do filme que as direitas desejavam,
em que como num jogo de xadrez a esquerda
iria dando passo a passo as peças todas.
É tarde e não adianta que se diga ainda
(como antes já se disse) que o povo resistiu
a ser iluminado, esclarecido, e feito
a enfiar contente a roupa já talhada.
Se muita gente reagiu violenta
(com as direitas assoprando as brasas)
é porque as lutas intestinas (termo
extremamente adequado ao caso)
dos esquerdismos competindo o permitiram.
Também não vale a pena que se lave
a roupa suja em público: já houve
suficiente lavar que todavia
(curioso ponto) nunca mostrou inteira
quanta camisa à Salazar ou cueca de Caetano
usada foi por tanto entusiasta,
devotamente adepto de continuar ao sol
(há conversões honestas, sim, ai quantos santos
não foram antes grandes pecadores).
E que fazer agora? Choro e lágrimas?
Meter avestruzmente a cabeça na areia?
Pactuar na supremíssima conversa
de conciliar a casa lusitana,
com todos aos beijinhos e aos abraços?
Ir ao jantar de gala em que o Caetano,
o Spínola, o Vasco, o OteIo e os outros,
hão-de tocar seus copos de champanhe?
Ir já fazendo a mala para exílios?
Ou preparar uma bagagem mínima
para voltar a ser-se clandestino usando
a técnica do mártir (tão trágica porque
permite a demissão de agir-se à luz do mundo,
e de intervir directamente em tudo)?
Mas como é clandestina tanta gente
que toda a gente sabe quem já seja?
Só há uma saída: a confissão
(honesta ou calculada) de que erraram todos,
e o esforço de mostrar ao povo (que
mais assustaram que educaram sempre)
quão tudo perde se vos perde a vós.
Revolução havia que fazer.
Conquistas há que não pode deixar-se
que se dissolvam no ar tecnocrata
do oportunismo ã espreita de eleições.
Pode bem ser que a esquerda ainda as ganhe,
ou pode ser que as perca. Em qualquer caso,
que ao povo seja dito de uma vez
como nas suas mãos o seu destino está
e não no das sereias bem cantantes
(desde a mais alta antiguidade é conhecido
que essas senhoras são reaccionárias,
com profissão de atrair ao naufrágio
o navegante intrépido). Que a esquerda
nem grite, que está rouca, nem invente
as serenatas para que não tem jeito.
Mas firme avance, e reate os laços rotos
entre ela mesma e o povo (que não é
aqueles milhares de fiéis que se transportam
de camioneta de um lugar pró outro).
Democracia é isso: uma arte do diálogo
mesmo entre surdos. Socialismo à força
em que a democracia se realiza.
Há muito socialismo: a gente sabe,
e quem mais goste de uns que dos outros.
É tarde já para tratar do caso: agora
importa uma só coisa - defender
uma revolução que ainda não houve,
como as conquistas que chegou a haver
(mas ajustando-as francamente á lei
de uma equidade justa, rechaçando
o quanto de loucuras se incitaram
em nome de um poder que ninguém tinha).
E vamos ao que importa: refazer
um Portugal possível em que o povo
realmente mande sem que o só manejem,
e sem que a escravidão volte à socapa
entre a delícia de pagar uma hipoteca
da casa nunca nossa e o prazer
de ter um frigorifico e automóveis dois.
Ah, povo, povo, quanto te enganaram
sonhando os sonhos que desaprenderas!
E quanto te assustaram uns e outros,
com esses sonhos e com o medo deles!
E vós, políticos de ouro de lei ou borra,
guardai no bolso imagens de outras Franças,
ou de Germânias, Rússias, Cubas, outras Chinas,
ou de Estados Unidos que não crêem
que latinada hispânica mereça
mais que caudilhos com contas na Suíça.
Tomai nas vossas mãos o Portugal que tendes
tão dividido entre si mesmo. Adiante.
Com tacto e com fineza. E com esperança.
E com um perdão que há que pedir ao povo.
E vós, ó militares, para o quartel
(sem que, no entanto, vos deixeis purgar
ao ponto de não serdes o que deveis ser:
garantes de uma ordem democrática
em que a direita não consiga nunca
ditar uma ordem sem democracia).
E tu, canção-mensagem, vai e diz
o que disseste a quem quiser ouvir-te.
E se os puristas da poesia te acusarem
de seres discursiva e não galante
em graças de invenção e de linguagem,
manda-os àquela parte. Não é tempo
para tratar de poéticas agora."

Jorge de Sena

Da Reprodução da Espécie e o Mais

“Porque sei que vou sair daqui uma grande mulher, com uma forte capacidade de liderança.” A frase, colhida em pleno voo, é de fazer parar qualquer um. E foi o que me aconteceu, de telecomando na mão, ontem à noite. A reportagem era, percebi depois, sobre colégios mistos ou sexualmente segregacionistas, suas vantagens e desvantagens (mais um exemplo, enfim, de periodismo idiota, típico de jornalistas que vivem encapsulados num mundo de fantasia). O dito escapava-se da boca de um sirigaita de 16 ou 17 aninhos, muito adubada de auto-confiança, dentro do seu uniforme de elite. E uma pessoa maravilha-se, claro, ao testemunhar a desfaçatez destes fedelhos e fedelhas, tão novinhos e já tão amestrados em conceitos hierárquicos, tão seguros de terem nascido (como não?) para “liderar” os rebanhos humanos. E é nestas situações que uma pessoa, fatalmente, dá em recordar os seus dezassete anos, e o horror que já então sentia pela esqualidez da alternativa mandar/ser mandado, tão galhardamente defendida por esta pequena ralé de elite.
Assim se perpetua, num regime que se diz democrático, o ciclo de dominação/submissão, com as suas desigualdades e as suas hierarquias “naturais”.

Mas é inevitável sentir-se que muito mal alicerçada está uma sociedade na qual uma criatura de 17 anitos pode assumir sem vergonha, com todo o à vontade de um príncipe herdeiro, que uns nasceram para mandar e outros para obedecer. Bem-aventurados os pais e os educadores que tão lepidamente inculcam nos seus pimpolhos esta filosofia da desigualdade natural. Dir-se-ia portanto que a única opção possível, duzentos anos depois de Robespierre, é a escolha entre devorar e ser devorado, pisar ou ser pisado, subir ou ser descido. É óbvio que a missão formadora desses centros de produção de “elites” se resume sobretudo a minar nas jovens crias de tubarão qualquer impulso de generosidade, qualquer ideia de cooperação, de justiça ou de solidariedade. Trata-se, em vez disso, de infundir nos meninos um tipo de competitividade perfeitamente espúria e degradante (porque meramente estatutária, material e conformista), de acordo com um conceito de educação que pouco se distingue do adestramento de cães de fila. Se esse espírito de competição se promovesse em torno de valores éticos, artísticos, científicos, estaríamos a fomentar um modelo de sociedade justa mas também meritocrática, capaz de sintetizar o melhor da cultura ocidental: o ideal auto-nobilitante do ágon grego e a tradição equitativa do humanismo iluminista. Mas não é esse o caso, ou cada vez menos o é, numa época em que a bondade do capitalismo foi já (contra todas as evidências) erguida à condição de dogma pelos papas do economicismo liberal.

E assim, qual o extremoso pai que, sendo estas as escolhas e podendo optar, não prefere enviar o filho para um colégio donde o seu crio saia já devidamente couraçado para as guerras sociais, armado de bastão e chibatinha? Qual o extremoso pai? Ponderoso dilema, sem dúvida. E é por isso que deixo a outros a nobre missão de perpetuar a espécie e o mais.

24.4.07

Lapidário

"The only thing that one really knows about human nature is that it changes. Change is the one quality we can predicate of it. The systems that fail are those that rely on the permanency of human nature, and not on its growth and development"
Oscar Wilde, The Soul of Man Under Socialism

23.4.07

850 de Meias Palavras

"Creio que uma das maiores dificuldades em que se debate a poesia portuguesa contemporânea é a abstracção, o inconcreto, a impossibilidade mental de escrever referencialmente, seja em relação a que for. Quase toda a gente, mesmo dos melhores, viva na aflição e na inibição de não dizer nada claramente, de não mencionar nada concretamente, de não estabelecer conexões racionais e lógicas com experiência alguma - o que nada tem que ver com liberdade de imaginação ou com a experimentação linguística, e é apenas o resultado de décadas de meias palavras cifradas. Também por isso é que se criou a ideia de que poesia é coisa delicada e para delicados, em que parece mal e é mau escrever duramente e directamente, usando de termos "grosseiros" - pelos vistos, a grosseria é privilégio das agressões feitas sob a capa da crítica. Em todos os tempos, a poesia não recuou em chamar as coisas pelos seus nomes, a não ser lá e onde, à semelhança do dito evangélico, os poetas exploram com uma das mãos as saias de Elvira, enquanto com a outra escrevem do amor celeste, sem que uma das mãos saiba poeticamente o que a outra faz."

Jorge de Sena, Exorcismos, 1972.

Pop Dell'Arte - "Querelle"

21.4.07

Mais do mesmo, portanto

Cinco semanas, foi quanto duraram os meus bons propósitos de loooooongas férias bloguísticas. Percebe-se que tão facilmente me canso das coisas como desse cansaço. Tomemos então isto como uma recaída, uma recidiva, que sabe-se lá quanto tempo irá durar.
A blogosfera, não há como negá-lo, é a melhor invenção desde o iogurte. E, tal como o iogurte, se não satisfaz, também não se dispensa. O que este meio de comunicação tem de mais fascinante é a sua genuína democraticidade, e a possibilidade de uma descentralização da opinião. Antigamente só falava publicamente quem tinha licença para tal; uma licença sempre outorgada por qualquer poder, e atribuída em função de duvidosos reconhecimentos de competências. A opinião, de uma forma ou de outra, era sempre controlada por quem a podia pagar. A blogosfera veio acabar com esse monopólio: aqui, tanto acerta ou disparata o Zé Toni como o Dr. Zé Tó, num exercício da mais pura liberdade de expressão. É possível que o resultado desta democratização da palavra se reduza a pouco mais do que uma proliferação caótica do disparate; mas porque haveria o cidadão comum de ter menos direito ao disparate do que o disparatador encartado? Se o Dr. Vasco Pacheco da Graça Pereira Valente pode proferir hebdomadárias parvoíces, por que não hei-de eu ter o mesmo direito? Se, ainda por cima, o faço de graça? Ninguém é mais do que ninguém, parece-me. A faculdade de julgar tanto pode resplender na mente de um aparelhador de pontes como de um pontífice do aparelho. A sensatez medra em todo o tipo de solos, já Descartes o dizia, e ninguém tem o direito de reivindicar, a priori, qualquer tipo de certificação para as suas sementes. Assim sendo, viva a blogosfera.

20.4.07

Thomas Eakins
























The Thinker. Óleo s/ tela, 1900

(Virginia Tech)

***

A TORRE E A METRALHADORA OU FREUD NA PRÁTICA



Era um bom menino.
Um típico virtuoso bom menino.
Desde criança, a mãe
não o tocava para não
criar-lhe complexos de
Édipo. O pai não o tocava,
para que ele não fosse
um dia homossexual.
Os amigos na escola
não o tocavam, nem
ele a eles, para que
ninguém, ou eles mesmos,
pensasse que eram
homossexuais. Ele
também não se tocava
para não sujar-de impureza.
Com as namoradas, sem se
tocarem, só a beijos e
"petting to climax" com
o menos possível de mãos
se contentava (em casa
despia depois as cuecas nas pontas dos dedos,
e tomava duche, sem se tocar) .
Teve muitas. Um dia
comprou uma pistola metralhadora
cujo longo cano engrossava na ponta,
subiu à torre (cuja cúpula à noite
se iluminava de vermelho)
da universidade aonde
era um dos alunos mais correctos, e
ejaculou balas sucessivas,
matando sete pessoas de ambos os sexos, e ferindo trinta.
Foi preciso a polícia
abatê-lo à queima-roupa.
(Como tinha apenas dezanove anos,
pode dizer-se que acertou as contas, descontando as
poluções nocturnas
que tanto o envergonhavam).
E na verdade jamais
tocou em alguém
nem ninguém a ele. Pois que,
sendo evidente a causa da morte,
não houve que fazer-lhe autópsia.
Apenas o cangalheiro que o lavou e penteou,
e que nem sequer lhe cuidou das partes baixas,
para dar um pouco de vida à expressão exangue,
lhe pôs uma corzinha de rouge nas faces
e a bâton lhe avivou os lábios.

Jorge de Sena, in Sequências.

Mais Imigração

Oitocentos anos de menoridade imposta e consentida, de analfabetismo programado, de indiferença por conceitos como liberdade, independência intelectual ou integridade; oitocentos de católico e gostoso pessimismo, de tutela inquisitorial, de “o menino não mexa, não olhe, não indague”, só podiam resultar neste humilde e amorfo jeito de ser que caracteriza o português. Inútil exigir a esse resíduo de oitocentos anos qualquer grande esforço ou empenho. Ambição é palavra malvista cá no terrunho, porque um ambicioso é por definição um descontente, alguém que deseja mais e melhor. E os portugueses, nesse aspecto, são o que de mais apático há na Europa: a mediocridade é a luz que nos guia. O português é um ser medianamente assustadiço e contentinho, que com parca e suja água satisfaz a pouca sede que sente.
Este mole temperamento tem correspondência no modo como nada exigimos, de nós próprios ou dos outros. Não nos sentimos com direito a nada porque nada exigimos, também, de nós próprios. Somos todos, enfim, demasiado tímidos, ignaros e gentis para exigir seja o que for. Mas quem não tem direitos está condenado a pedir favores, como diz um poema de Alberto Pimenta. Não é por acaso que os nossos emblemas nacionais são a cunha e a bisbilhotice, e que um dos traços definidores do português é essa mistura de sornice e humildade típica dos indefesos. Mas como podia ser doutra maneira? Como ser exigente e frontal num país onde o conhecimento e a verdade sempre foram alvo de suspeita, ou então confundidos com a esperteza e o parecer bem? Onde toda a gente se satisfaz com pouco, onde um fumo de aparências substitui por baixo preço a estafante grandeza, não há lugar para a emulação. “Mais vale primeiro na tropa, que segundo na Europa,” diz o português, de barriga levantada e telemóvel a brilhar.
Com este longo background de submissão, o português médio não tem na cabeça senão a ideia de se “safar”, de preferência sem o mínimo esforço e por via de qualquer concessão providencial, caia ela de Fátima ou do Estado. Na política, na indústria, na cultura, na sociedade em geral, não há na Europa quem como nós tanto reze a um qualquer totoloto, esse ópio dos indolentes. Procurar o melhor, o bem comum, e construí-lo depois, ou reivindicá-lo, isso sobrepassa as nossas forças, a nossa autoconfiança, minada por oitocentos anos de elites incompetentes, paternalistas, tacanhas e corruptas. Preferimos, então, queixar-nos da vida a exigir dela seja o que for, preferimos que nos roubem a incomodar os srs. ladrões, preferimos morrer a ter chatices, pá. Antes o torpe remanso do “pássaro na mão” (mesmo que empalhado) do que o trabalhoso anseio pelos “dois a voar”; antes o conhecido nada do que o desconfortável “queremos tudo”.
Não admira, portanto, que nos afectem nostalgias por um paizinho providencial, um professor “severo mas justo”, um cão de cego para a nossa pobre miopia, à boa maneira salazarenta. Não admira a passividade, a indiferença pelo saber, a incultura estética e política, a falta de amor pelo país (disfarçada agora com a parolice da “Portuguesa” berrada nos estádios) e o desprezo por si próprios, o desconhecimento das regras básicas do civismo. Ninguém sente o país como seu, ninguém se sente ligado a isto. Para os portugueses, a pátria começa e termina dentro de casa. À porta de casa começa o baldio, a terra de ninguém, que os oportunistas da política e da finança tratam de confiscar, desfigurar e rentabilizar em proveito próprio. Mas quem não deseja a maçada de tomar conta da sua vida, consente que lha tomem. Nem mais. Com tudo isto, os portugueses parecem cada vez mais encolhidos, mais tugueses. E também Tugal vai perdendo sílabas, até que nada reste para soletrar.

José Miguel Silva

Público, 13 de Abril 07